sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Há consenso entre a moral e a ciência


Revista Internacional de Espiritismo
Outubro 2011
Emerson Oliveira



O Espiritismo por Kardec tem como base o seu método científico de análise. As suas obras são direcionadas para a compreensão teórica das bases espíritas, com pés na observância das comunicações espirituais, isto é, seus fundamentos e razões são pensamentos mais densos e a sua colocação temporal, em relação à doutrina espírita, é salutar e intencional. Noutras palavras, para se introduzir ao Espiritismo, o primeiro passo, como em todas as áreas do conhecimento, é a teoria. Somente depois a análise dos casos práticos: os romances espíritas. Isto para que nenhum romance esteja desvirtuado das bases teóricas, pregando absurdos como a dúvida infundada sobre a existência de Deus ou a eternidade dos espíritos.

O momento histórico de Kardec era propício. O Estado francês pós-revolucionário, emanado de ideias iluministas, permitia uma teorização densa e aquele povo que inicialmente trabalhou com essas ideias possuía condição intelectual de dar início ao desenvolvimento das mesmas, fazendo com que, tempos depois, estas se espalhassem pelo mundo.

Então, alguns estudiosos analisam esse momento pelo perfil científico que conferiu ao Espiritismo. A ciência que direcionava os estudos de Kardec fazia com que ele selecionasse pontos de partida, estabelecesse questionamentos1 e elegesse hipóteses que trouxessem aptidão para se transformar em respostas, sujeitas ao crivo da experiência – influência kantiana – e à tríade contínua tese-antítese-síntese de inspiração filosófica alemã, sobretudo de influência hegeliana.

Por outro lado, ao analisar um outro grande expoente da difusão espírita, o brasileiro Francisco Cândido Xavier, alguns estudiosos – e há tese de doutoramento da Universidade de São Paulo que reflete essa ideia2 – distinguem-no totalmente de Kardec, como se Chico abandonasse – ou ao menos deixasse de lado – a postura científica e passasse a basear o Espiritismo na moral. As colocações, contudo, devem ser analisadas com cuidado, tanto levando Chico para Kardec, como o caminho inverso. Vejamos:

Que é a moral além de uma ideia abstrata desmembrada do senso de justiça? Poder-se-ia colocar, sem pestanejar, que as ideias se confundem. Posto isto, remetemo-nos a Allan Kardec. Será que suas obras eram puramente científicas? De forma alguma. A ciência é método; a justiça é fim. Toda a construção de Kardec é em prol da justiça divina intangível e inalcançável. Essa verdade absoluta não nos é palpável. Nossas imperfeições embaçam nossa vista, mas o objetivo de toda existência é corrigir os graus oculares que produzem tal efeito. A ciência, base teórica, marco de análise do Espiritismo por Kardec, não desvirtua a moral. Todas as suas obras, sem exceção, direcionam-se para a moral, entendida como um senso absoluto de justiça – embora inatingível.

Ao principiar o estudo de sua obra-chave, Kardec assim dispõe: “Este livro, não tivesse ele por resultado apenas mostrar o lado sério da questão e provocar estudos nesse sentido, isso já seria muito, e nos aplaudiríamos de ter sido escolhido para realizar uma obra da qual não pretendemos, de resto, nos fazer nenhum mérito pessoal, uma vez que os princípios que ela encerra não são nossa criação; seu mérito, portanto, é inteiramente dos Espíritos que a ditaram. Esperamos que ela tenha um outro resultado, o de guiar os homens desejosos de esclarecerem, mostrando-lhes nesses estudos um objetivo grande e sublime: o do progresso individual e social, e de lhes indicar o caminho a seguir para atingi-lo”3.

Mesmo a própria análise ontológica da justiça, como o fizera o jurista tedesco Hans Kelsen, deve obrigatoriamente passar pelo crivo científico. É óbvio, todavia, que essa justiça é sempre relativa, pois, tal qual a verdade, ainda nos é conceito inalcançável. Mas a busca é obrigação constante. Suponha que alguns animais precisam se alimentar, mas o alimento está suspenso no ar, fora de seu alcance, uns mais altos, outros mais baixos. Para ter a chance de viver, os animais precisam tentar alcançar os alimentos, desenvolver meios físicos e até de característica pensante. A tentativa lhes trará os alimentos mais baixos, e então deverão buscar aqueles mais altos, infinitamente. O saber, a verdade e a justiça são alimentos do espírito.

Noutra via, invertendo-se aquela perspectiva, seria errôneo supor que Chico era puramente moralista e não científico. Seus romances obviamente seguem o embasamento teórico-científico de Kardec, como já afirmamos. Essa suposição de posicionamento puramente moralista se dá em virtude do caráter mais narrativo de suas obras e lições, inclusive lembrando constantemente passagens bíblicas. Xavier estudou o Espiritismo aplicado, vencendo, como manda a evolução, o momento puramente teórico e fundador das bases de Kardec. Isso significa que a teoria estava intrínseca em Chico, que nunca lhe abandonou, mas colocou outras engrenagens para funcionar. Para ficar mais claro, forçoso indicar que Kardec estava em Chico4. E isso nos permite até outras considerações, mas que não vêm ao caso no momento.

Na inauguração de Fonte Viva, Emmanuel tece os seguintes comentários:

“Aceitamos, perfeitamente, as bases científicas e filosóficas em que repousa a Doutrina Espírita, as quais nos ensejam adquirir a ‘fé raciocinada capaz de encarar a razão face a face’, contudo, sobre semelhantes alicerces, vemo-la, ainda e sempre, em sua condição de Cristianismo restaurado, aperfeiçoando almas e renovando a vida na Terra, para a vitória do Infinito Bem, sob a égide do Cristo, nosso Divino Mestre e Senhor”5.

Por essa razão é que a ciência e a moral não se permitem enquanto lados opostos, como uma postura maniqueísta supõe o bem e mal. Na verdade, como é cabal lembrar, a ciência é o método e a moral é o fim de toda e qualquer existência. Basta analisar a filosofia europeia dos séculos XV ao XIX e essa afirmação se torna clara. Que eram as ideias de regras de método de Descartes e Durkheim, além de um meio de se analisar os dados? E que dizer de Kant, no método, na experiência e na sua concepção de moral enquanto imperativo categórico? Kardec era um homem estudioso e bem localizado intelectualmente no tocante à ciência e filosofia terrena. Soma-se a isso o auxílio de tantos espíritos que lhe impulsionaram as ideias.

Chico já partiu da construção de Kardec e fez as adições de sua própria intelectualidade, meio e que espíritos próximos lhe trouxeram, sucedendo Kardec sem desconsiderá-lo, mas vangloriando o fundador terreno da codificação das bases espíritas. A moral de Chico está sempre a homenagear Kardec. Se há distância, esta é no tempo, o que pode ser suprido pela eternidade dos espíritos.



1. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.

2. STOLL, Sandra Jacqueline. Espiritismo à brasileira.

3. KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. p.40.

4. Aqui entenda-se não Francisco Cândido Xavier simplesmente, enquanto pessoa, mas o médium e todas as ideias para ele perpassadas pelos espíritos que o acompanhavam.

5. XAVIER, Francisco Cândido. Fonte viva. p.14.

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